6 de março de 2019

Posto de trabalho ou não ganharás o pão com o suor do teu rosto


     
Nos decénios seguintes à Primeira Guerra Mundial o desemprego era geral e a opressão sobre os trabalhadores ia de mal a pior. Um acidente ocorrido na cidade de Maguncia ilustra melhor que todos os tratados de paz, livros de história e dados estatísticos, o estado de barbárie a que se viram reduzidos os grandes países europeus pela incapacidade de manterem a sua economia à tona de água sem o recurso à violência e à exploração. Certo dia, em 1927, em Breslau, a família Hausmann – um casal e dois filhos pequenos –, que vivia em condições muito precárias, recebeu uma carta de um ex-colega de Hausmann oferecendo-lhe o seu posto de trabalho, um posto de confiança ao qual renunciava por uma pequena herança que iria receber em Brooklyn.

      A carta provocou uma agitação febril na família que após três anos de desemprego estava já à beira do desespero. O homem de imediato levantou-se do seu leito de enfermo, onde estava a recuperar de uma pleurisia, pediu à sua mulher que colocasse o essencial numa velha mala e várias caixas, pegou nas crianças pela mão, viu com a mulher a melhor forma de desocupar a sua miserável casa, e, apesar do seu estado débil, dirigiu-se à estação. (Esperava ele que, levando os filhos consigo, colocaria o seu colega perante um facto consumado). Instalado no seu compartimento com febre alta e uma apatia total, alegrou-se quando uma jovem empregada doméstica recém despedida do seu trabalho, que viajava para Berlim no mesmo comboio e o tomou como viúvo, encarregou-se das crianças, comprando-lhes até algumas bugigangas com dinheiro do seu bolso. O estado de saúde do homem agravou-se tanto em Berlim que teve de ser internado, quase inconsciente, num hospital. Ali morreu cinco horas mais tarde. 


      Não tendo previsto este acidente, a empregada doméstica, uma tal Leidner, não abandonou as crianças, levou-as para uma pensão barata. Já havia tido muitos gastos com eles e com o falecido, mas aquele par de miúdos desamparados dava-lhe pena, de modo que, um tanto impulsiva – pois sem dúvida teria feito melhor entrando em contacto com a mulher de Hausmann pedindo-lhe que viesse – viajou nessa mesma noite de volta a Breslau com as crianças. A mulher de Hausmann recebeu a notícia com aquela atroz insensibilidade própria de quem se acostumou a que a sua vida não siga, de forma alguma, o curso normal. Um dia inteiro, o seguinte, dedicaram-no ambas as mulheres a comprar, a prestações, modestas ofertas de luto. Ao mesmo tempo continuaram a desocupar a casa apesar disso agora ter perdido todo o sentido. De pé nas divisões vazias, carregada com caixas e maletas, a mulher teve uma terrível ideia pouco antes da partida. O posto de trabalho que ela perdera ao perder o marido não havia abandonado por um só instante a sua pobre cabeça. Era imprescindível salvá-lo a qualquer preço: descabido seria esperar semelhante oferta do destino uma segunda vez. O plano que, enfim, ela concebeu para salvar aquele posto de trabalho era tão temerário como desesperada era a sua situação: consistia em substituir o seu marido e ocupar, na fábrica, a posição de guarda, pois era essa a oferta, disfarçada de homem. Sem dar mais voltas ao assunto, arrancou as roupas negras do corpo e, tirando de uma das maletas atadas com cordel o traje domingueiro do seu marido, vestiu-o sem muito jeito perante o olhar das crianças e com a ajuda da sua nova amiga que captou quase de imediato a sua ideia. E assim, uma nova família, integrada por não menos cabeças que antes, apanhou o comboio para Maguncia retomando a ofensiva ao encontro do prometido posto de trabalho. Desta forma cobrem os novos recrutas as baixas nos batalhões dizimados pelo fogo inimigo.
      
      A data em que o titular do posto devia embarcar em Hamburgo não permitiu às mulheres a paragem em Berlim para assistir ao enterro de Hausmann. E enquanto ele era levado do hospital sem cortejo fúnebre para baixar à cova, a sua mulher, vestida com as suas roupas e levando a sua documentação no bolso, dirigia-se para a fábrica na companhia do seu ex-colega de trabalho, com quem havia rapidamente chegado a um acordo. Na casa do colega passou outro dia – como sempre, na presença das crianças – ensaiando infatigavelmente a forma de andar, sentar, comer e falar de um homem, sob o olhar do colega e da sua nova amiga. Pouco tempo correu entre o momento em que a tumba acolheu Hausmann e aquele em que foi ocupado o posto que lhe fora prometido.
      
      Reintegradas na vida – ou seja, na produção – por uma combinação de fatalidade e de sorte, as duas mulheres levaram a sua nova vida com seus filhos de maneira ordenada e circunspecta, como senhor e senhora Hausmann. O trabalho de guarda numa grande fábrica colocava exigências nada irrelevantes. As rondas nocturnas através dos pátios, salas de máquinas e armazéns exigiam fiabilidade e coragem, atributos desde sempre denominados como viris. O facto de a Hausmann reunir esses atributos – uma vez obteve inclusive um reconhecimento público da direcção por ter capturado e neutralizado um ladrão, um pobre diabo que tentou roubar lenha – demonstra que a coragem, a força corporal e a presença de espírito podem dar-se a qualquer um, homem ou mulher, que se sujeite a adquirir-los. Em poucos dias a mulher transformou-se em homem, do mesmo modo que o homem se tem vindo a transformar em homem ao longo de milénios: mediante o processo de produção.
      
      Passaram quatro anos de relativa segurança para a pequena família, durante os quais cresceram as crianças e o desemprego continuou a aumentar ao redor. Até então, a vida doméstica dos Hausmann não tinha despertado suspeita alguma entre a vizinhança. Mas um dia houve que resolver um acidente. O porteiro do prédio costumava ir pelas tardes a casa dos Hausmann, onde os três jogavam às cartas. O “guarda” esperava-o ali sentado, em mangas de camisa, com as pernas muito abertas com um jarro de cerveja à frente (uma cena que os jornais ilustrados publicariam mais tarde com letras garrafais). Depois ele ia para o seu trabalho, deixando o porteiro sentado junto à sua jovem esposa. Impossível evitar certas intimidades. Seja porque em alguma dessas ocasiões Leidner soltou a língua, seja porque o porteiro viu pela fresta da porta o guarda mudar de roupa, o certo é que, a partir de dado momento, os Hausmann começaram a ter dificuldades com ele e tiveram de ajudar financeiramente o bêbado, a quem o seu trabalho lhe dava muito pouco para além de habitação. Particularmente difícil se tornou a situação quando as visitas de Haase – assim se chamava o porteiro – à casa dos Hausmann começaram a chamar a atenção dos vizinhos, que passaram a comentar o facto de que a “senhora Hausmann” costumava levar sobras de comida e garrafas de cerveja ao piso do porteiro. Os rumores sobre a indiferença do guarda em relação aos infames acontecimentos que ocorriam na sua casa chegaram à fábrica e, durante algum tempo, ficou quebrada a confiança que ali lhe tinham.
      
      Esta situação obrigou os três a simular, para o exterior, uma ruptura na sua amizade. Mas, claro está, a exploração a que o porteiro submetia ambas as mulheres não só prosseguiu como assumiu proporções cada vez maiores. Um acidente ocorrido na fábrica pôs um ponto final em toda a história e trouxe à luz o indignante caso.
      
      Com a explosão durante a noite de uma das caldeiras, o guarda ficou ferido, não com gravidade, mas o bastante para ser evacuado após perder a consciência. Quando a Hausmann voltou a si, encontrava-se num hospital de mulheres. Impossível descrever o seu horror. Com feridas e ligaduras nas pernas e nas costas, torturada pelas náuseas, mas angustiada por um terror muito mais moral que aquele que podia provocar-lhe uma ferida nos ossos, de prognóstico nada claro, arrastou-se por um pavilhão cheio de doentes ainda dormindo e chegou à sala da chefe das enfermeiras. Antes que esta pudesse abrir a boca – ainda se vestia, e por grotesco que pareça, o falso guarda teve de superar um pudor adquirido antes de entrar no espaço de uma mulher a meio de se vestir, algo só permitido a pessoas do mesmo sexo -, a Hausmann implorou-lhe usando todo o tipo de súplicas que não comunicasse à direcção da fábrica a fatal descoberta. Não sem compaixão respondeu a chefe das enfermeiras à desesperada paciente, que desmaiou duas vezes mas insistiu em continuar a conversação, que os papeis já tinham sido enviados para a fábrica. Ocultou, por outro lado, que a incrível história se espalhou pela cidade como rastilho de pólvora.
      
      A Hausmann abandonou o hospital vestindo roupas masculinas. Chegou a casa pela manhã, e a partir do meio-dia começou o bairro inteiro a concentrar-se à sua porta, na rua, esperando o falso homem. Ao entardecer a polícia encarregou-se da desgraçada pondo fim ao escândalo. Ainda ia vestida de homem quando entrou no carro. Não tinha outra roupa.
      
      Embora sob custódia policial, continuou a lutar pelo seu posto de trabalho, claro que sem êxito. Deram-no a um desses inúmeros personagens que aguardam uma vaga e têm entre as pernas aquele orgão registado na sua certidão de nascimento.
      
      A Hausmann não podiam censurar por não tentar desenrascar-se por qualquer meio, trabalhou logo por um tempo, segundo dizem, como empregada de um bar suburbano, entre fotos em que aparecia em mangas de camisa, jogando às cartas e bebendo cerveja no seu papel de guarda (fotos feitas, em parte, após o desmascaramento), e era considerada um monstro pelos maus jogadores. Logo desapareceu entre esse exército de milhões e milhões de seres que, para ganharem um modesto pão quotidiano, se vêem forçados a vender-se total, parcial e, às vezes, mutuamente; ou a renunciar em poucos dias costumes centenários e que quase pareciam eternos; ou, como vimos, até a mudar de sexo, e tudo isto sem êxito algum na maioria dos casos; perdeu-se entre toda essa gente, em suma, já perdida, e, se houver que dar crédito à opinião imperante, definitivamente perdida.


Bertolt Brecht, Relatos 


Traduzido do castelhano por Oceano Falésia