8 de abril de 2012

Dramaturgia, visão política do mundo.*

É famosa a frase em que Marx afirmava “os filósofos têm interpretado o mundo de diferentes maneiras. Mas o que importa hoje é transformá-lo”. Esta frase, contendo todo um programa teve repercussões em todas as áreas da vida.

Milénios de idealismo dissipavam-se no ar.


Obviamente as artes e o teatro não podiam passar ao lado do materialismo marxista. Ao perguntarem-lhe se poderia o teatro reproduzir o mundo, Brecht respondeu “creio que o mundo de hoje pode ser reproduzido, mesmo no teatro, mas somente se for concebido como um mundo susceptível de ser transformado”.

Brecht apontava assim aquilo que seria o novo papel do teatro na sociedade do seu tempo, um tempo de agudização da luta de classes, de ascensão do socialismo, de enorme crise do capitalismo que, em desespero de causa, arrancou a máscara e lançou as garras de fora numa deriva fascista.

Os tempos de hoje, com a diferença de o socialismo não se colocar ainda tão evidentemente como a alternativa ao capitalismo, são muito idênticos aos tempos de Brecht, particularmente dos anos entre a grande crise do capitalismo de 1929 até aos anos da Segunda Grande Guerra.

Hoje, a luta de classes agudiza-se, e o capitalismo, em crise profunda, defende-se aguçando as suas garras fascistas.

De facto, em relação aos tempos de Brecht, a grande novidade é que não há grande novidade, vivemos ainda num sistema de exploração do ser humano pelo ser humano, apenas com algumas evoluções em termos de refinamento das suas formas de dominação, mas o essencial mantém-se.

É neste contexto mundial, com repercussões óbvias em termos nacionais, que nós, trabalhadores das artes e da cultura tal como todos os outros trabalhadores, nos deparamos.

Portanto, a grande questão do mundo, o derrube do capitalismo e a edificação de um sistema social e económico alternativo, está ainda por resolver na prática.

Colocado que está o problema, chegou a parte em que pelo menos alguns leitores devem estar a perguntar-se o que é que tem tudo isto a ver com arte, teatro ou dramaturgia.

Nos dias que correm a ideologia dominante continua a separar as artes da política, fazendo-nos crer que temos de optar por uma ou por outra.

Portanto se assumimos que o nosso trabalho tem uma perspectiva política então não estamos a fazer arte, e se estamos a fazer arte então não podemos assumir uma perspectiva política.

Normalmente a classe dominante considera depreciativamente que é política, ou de intervenção, a obra que coloca em causa os seus interesses, a sua visão do mundo, porque à classe dominante interessa que o mundo seja imutável, porque este mundo, tal como está, serve na perfeição os seus objectivos predatórios.

Daí que a classe dominante não esteja minimamente interessada na ideia das artes reproduzirem o mundo enquanto algo transformável.

A sua luta é precisamente a oposta, à classe dominante convém-lhe que mundo actual e as suas relações de opressão surjam, perante os espectadores passivisados, como representações naturalizadas, intrínsecas a uma mistificada natureza predefinida do ser humano.

Obviamente a classe dominante raramente assume este combate, um dos seus truques mais eficazes é fazer-nos crer que não está em luta. Desta forma a sua cultura é por si naturalizada como sendo apolítica, imparcial, interclassista. É esta a sua dramaturgia, é esta a visão que lhe interessa passar do mundo, e essa visão é profundamente política.

Que fazer?

Em primeiro lugar, todos aqueles que estão interessados no papel activo do teatro na transformação do mundo, devem recusar com clareza a separação entre arte e política. As duas correlacionam-se tanto na cultura dos actuais dominados como na cultura dos actuais dominadores.

Depois, a tarefa mais importante é reestruturar as relações de produção estabelecidas dentro dos grupos de teatro e/ou equipas de trabalho.

Felizmente hoje, em Portugal, estão a desenvolver-se novas formas de relação entre os vários trabalhadores que participam no trabalho colectivo que é montar uma peça de teatro.

É necessário cada vez mais que, em contraponto à especialização, se assuma a colectivização do trabalho teatral, de forma a acabar com a barreira entre aqueles que controlam a dramaturgia, isto é, a visão política do mundo expressa em determinada peça, e aqueles que a concretizam em cena.

Normalmente, no teatro actual, essa visão política do mundo é controlada essencialmente pelo encenador, ou pelo dramaturgo, ou pelos dois. À restante equipa cabe apenas reproduzir o mais fielmente possível essa visão, normalmente previamente definida e preparada ainda antes dos ensaios começarem.

Neste novo tipo de relação de produção todos os participantes ganham uma nova responsabilidade colectiva sobre o seu trabalho, já que todos passam a ser agentes activos da construção da visão política do mundo expressa na peça, que deve ter ainda em conta à activação do público nessa mesma construção.

Este processo de colectivização do trabalho teatral suscitará novas perguntas. Por exemplo sobre o papel do dramaturgo nele, agora que não está mais isolado no cubículo onde escreve.

Implica também repensar as técnicas de ensaio, de improvisação, de discussão e activação ideológica da equipa. Implica repensar os próprios tempos de produção e as suas formas de circulação e de relação com os públicos. Implica repensar o ainda largamente dominante formato “à italiana”. Implica repensar os modelos de pesquisa. Implica repensar a própria formação das equipas.

Representa um enorme atraso, no mundo de hoje, não ser normal os grupos de teatro terem dramaturgos ou equipas de dramaturgia residentes, que escrevem, que pesquisam, que contribuem em permanência para a dinamização filosófica e ideológica dos ensaios.

A progressiva transformação dos modelos de produção actuais, esgotados e alienantes, em modelos de produção colectivizados, implicará necessariamente uma mudança na dramaturgia, na visão política do mundo dos colectivos e, claro, dos dramaturgos nele envolvidos e na visão expressa nas peças produzidas.

No Brasil são vários os grupos que estão bem conscientes destas necessidades já com um bom caminho percorrido, entre eles, a Companhia do Latão. Em Portugal, esse processo está ainda muito atrasado, mas existem vários sinais de transformação.

O nosso grupo, o Teatro Fórum de Moura, está percorrendo esse trilho.


Jorge Feliciano 17/11/2011