28 de março de 2013

Paraíso depois de morto?! Encham vocês a barriga com ele! *


Joane O Parvo é um personagem que nos causa grande intriga. Não tanto o personagem, mas a forma como Gil Vicente o contextualiza no Auto da Barca do Inferno.

Custa acreditar que essa figura surja nesta peça apenas como efeito cómico, um truque de autor para fazer rir. Um personagem efeito que alguns peritos chegam a dizer não representar qualquer classe ou camada social.

Outros, a maioria (e passaram 500 anos!), seguem o ponto de vista original, isto é, aquele que foi o de Gil Vicente. Para eles, Joane O Parvo representa o povo trabalhador, o Zé Povinho, essa maioria sem eira nem beira, parva, sem maldade, sem consciência das malfeitorias que os opressores lhe fazem, gente mansa mas com uma certa irreverência inconsequente, enfim, a representação de uma maioria trabalhadora sem consciência de classe e incapaz de se organizar para defender os seus interesses.

Basta ver encenações contemporâneas do Auto da Barca do Inferno e perceber que no rol de atualizações continua a lá estar ele, o Joane O Parvo, agora vestido de operário, mas sempre cândido apesar das irreverências, satisfeito com a sua condição e grato pelo prémio que é embarcar rumo ao paraíso celeste.

Há quinhentos anos atrás esta visão redutora fazia o favor aos senhores feudais e, principalmente, à burguesia em ascensão desde a Revolução de 1383 com a qual, nas suas peças, Gil Vicente mostra maior afinidade (apesar de o fazer contraditoriamente, num reflexo involuntário das próprias contradições históricas da época, do seus fluxos e refluxos).

E hoje? Numa época também contraditória, de avanços e recuos, mas de ascenso da classe operária e do povo trabalhador, ao insistir-se num Joane O Parvo tolinho, grato por ir para o céu depois do inferno de uma vida de exploração, estamos a fazer o favor a quem? Que sentido faz representarmos os trabalhadores como uma classe congelada, sempre parada no mesmo tempo, sem movimento, como se nunca tivesse lutado, como se nunca tivesse saído vitoriosa, como se nunca houvesse dado um passo sequer rumo à sua emancipação?

Muitos consideram que a arte, o teatro, não devem tomar partidos. E não percebem que só por o afirmarem já estão a tomar um partido. A nossa peça, Os Infernos de Joane O Parvo, toma partido. Toma partido pelo personagem e pela classe que ele representa.

Ao fazê-lo, escrevemos a sua história, baseada em dados históricos de várias épocas, em reinterpretações da bíblia, e, também, na utilização de duas histórias dos “Mistérios Buffos” de Dário Fo, um trabalho que resultou da pesquisa e recolha de textos que este autor fez em torno dos jograis, bufões, dos actores que na Idade Média representavam nas feiras, nos largos, nas ruas, para o povo.

O nosso trabalho tenta trazer até vós essa singeleza, esse acto de comunicação simples que é um actor representando para os seus iguais, falando-lhes das verdades do mundo.

Jorge Feliciano
20121017

*frase de Joane O Parvo na peça “Os Infernos de Joane O Parvo” do Teatro Fórum de Moura com interpretação de Luís Mouzinho e escrita e encenada pelo autor deste blogue.
O presente texto faz parte da folha de sala distribuída ao público da peça referida que estreou a 17 de Novembro de 2012 em Moura.